Basta dizer "Marialva" e logo um
mundo de evocações nos vem à lembrança. Os Túrdulos, os
lusitanos, os romanos, os suevos, os visigodos, os mouros e por
fim os cristãos da Europa, todos eles por aqui passaram e
deixaram marcas indeléveis. Tanto assim que, em Marialva, cada
uma das suas pedras é mais do que um livro aberto: é um
testemunho precioso da sua história única.
Rezam as crónicas mais antigas que
terá sido fundada pelos Túrdulos cerca de dois mil anos antes de
Cristo. Os povos da Ibéria foram igualmente seus enamorados e
por ela terçaram armas. Os lusitanos dela fizeram local de
defesa e atalaia. E os romanos, que tinham a seu favor a força e
a eficácia, reforçaram-na, alindaram-na, e dela colheram
proveito. Para a defesa, para a agricultura, para o lazer, a
Civitas Aravorum foi notável ponto de referência nas terras
graníticas para lá do termo da Meseta. Para a defesa a cidadela,
para morar a villa serena e para o lazer e proveito agrícola as
belas terras da Devesa, onde uma excelente Naumaquia os
deslumbrava e lhes ocupava os ócios.
Caída a glória de Roma, outros povos
subiram e desceram as suas encostas graciosas e deram vida aos
seus campos generosos. Com os suevos cristianizados cada vez
mais se foi marcando o caminho para Caliábria, junto à foz da
ribeira de Santa Maria de Aguiar; e com os visigodos, uma vez
convertidos, se foram depois construindo templos e mosteiros.
Que os mouros, tudo invadindo, em nome de Alá, arrazaram e
destruíram, numa reconversão religiosa, urbana e agrícola,
semeando palavras e inovando métodos. Foram violentos algumas
vezes, sobretudo com Almançor, mas, normalmente, adaptavam-se à
gente local.
A beleza de uma ou outra moura terá
deixado algum encantamento, e daí as mouras encantadas nas
fontes, que choram noite e dia, se calhar com saudades de algum
amor cristão. Nesse sentido poderia dizer-se que a lenda da
Moura de Marialva é coeva da lenda do Mouro de Casteição, assim
dizendo alguns terem ouvido nas madrugadas de S. João gritar dos
lados de Casteição:
Ó Moura, mourinha, de Marialva,
cara bonita, pernas de galga!
Ao que ela responde:
Ó Mouro, mourão de Casteição,
cara farrusca, pernas de cão!
Fernando Magno, rei de Leão, herói
da Reconquista, que por duas vezes libertou Marialva da Mourama,
baptizou-a com o nome de Malva ou Maria Alva, por certo em
lembrança da Virgem Maria, em louvor da qual, junto a Leão, e em
local semelhante a este, havia um templo paleo-cristão chamado
Marialba, pelo qual o monarca nutria particular carinho. "O
culto Mariano é uma característica do séc. XI e XII. Evocar
Santa Maria e perpetuar-lhe o nome em Maria Alba, ou Alba Plena
ou a Pura Maria Santíssima (a ideia é a mesma) na reconquista de
Aravorum, parece-nos coerente e legítimo, por parte do Rei de
Leão (...)" - ( Prof. Dr. Adriano Vasco Rodrigues, in Terras
da Meda, pag. 100.) Maria Alva era, pois, um nome que
louvava a Virgem, e esta seria a razão do nome cristão de
Marialva, em desfavor de outra versão, de todo improvável, que
nos conta que o rei D. Afonso II, o Gordo, teria dado esta terra
a uma senhora chamada Maria Alva e daí nasceria o nome.
Segundo o citado Prof. Dr. Adriano
Vasco Rodrigues (in Terras da Meda - Natureza e Cultura, pag.
88), "Quando Fernando Magno de Leão e os seus cavaleiros
conquistaram Marialva, em 1063, a Civitas Aravorum vivera já o
período germânico e sofrera a ocupação muçulmana, estando,
portanto, muito arruinada na traça romana. Mas, seria ainda
monumental com as suas torres do castrum, as ruas e casas baixas
de influência luso-romana, as fontes singelas, os templos, a
naumaquia, ou lago, as calçadas e a ponte. Talvez houvesse mesmo
um teatro ou circo para as corridas. Hoje desconhecemo-lo. O
repovoamento, as necessidades de restaurar e alargar a cintura
defensiva, o próprio estilo de vida do homem medieval e a
ignorância de todos os tempos, destruíram ou alteraram
profundamente o que os romanos ali edificaram. Contudo, Marialva
permanece um vasto campo arqueológico, pleno de surpresas. A
remota ocupação daquela zona revela testemunhos do homem
pré-histórico, do homem clássico, do medieval e do moderno. O
tempo deteve-se em Marialva (...)".
D. Afonso Henriques deu foral a
Marialva em 1179, com o fim de a povoar e desenvolver, pois os
mouros tê-la-ão deixado praticamente despovoada. Com idêntica
política de povoamento, o rei D. Dinis criou, por provisão
assinada em Coimbra em 4 de Novembro de 1286, a feira mensal de
Marialva, na qual os feirantes beneficiavam de certos
privilégios, como isenção de portagem e o direito da paz da
feira, não podendo ser incomodados pelos credores, nem presos
por crimes que ali não tivessem praticado. O seu dia maior é,
neste aspecto, a Feira Anual em dia de Santiago, 25 de Julho. D.
Manuel I deu-lhe foral novo em 14 de Setembro de 1512.
Em 1527 havia em Marialva 68
habitantes dentro da muralha e 73 no arrabalde; no século XVII
as freguesia de Santiago e S. Pedro tinham 100 fogos e 400 almas
no seu conjunto; em 1900 os fogos eram 181 e as almas 681. A
freguesia de Marialva tinha 688 habitantes em 1920, 728 em 1940
e desde esse ano a 1981 perdeu 37% da sua população, pois só já
tinha 457.
Em 1441 o Regente D. Pedro criou o
Condado de Marialva, sendo 1º Conde de Marialva Vasco Fernandes
Coutinho. O Marquesado foi instituído na pessoa de D. António
Luís de Menezes, 3º Conde de Cantanhede, no século XVII. Este 1º
Marquês de Marialva foi um herói nacional, tendo comandado um
exército contra D. João de Áustria, general das tropas
espanholas, na Guerra da Restauração, distinguindo-se na batalha
do Ameixial e na libertação de Évora, em 1663.
Anda ligado ao toureio o nome de
Marialva, por o 4º Marquês, D. Pedro Noronha Coutinho, ter sido,
além de um ilustre militar, gentil-homem do rei D. José I e
estribeiro-mor de D. Maria I. Era, além disso, um mestre da arte
de cavalgar, a qual passou a ser conhecida como a "arte de
Marialva", e um distinto cavaleiro tauromáquico, muito popular e
com ligações ao fado e à boémia, de tal modo que motivou
posteriores criações artísticas, designadamente na literatura
(com Rebelo da Silva, Júlio Dantas e Cardoso Pires).
A Casa de Marialva, após o
falecimento do 6º Marquês, D. Pedro Vito Coutinho Menezes, sem
sucessão, foi extinta e incorporada na Casa de Lafões, por a
duquesa de Lafões ser irmã do falecido Marquês.
Outro nome famoso anda ligado a
Marialva, pois nesta histórica localidade nasceu Paulo Correia,
que foi lente na Universidade de Alcalá - Espanha e foi tão
grande mestre na Arte Médica que foi chamado a Roma para curar
vários príncipes e prelados daquela Cúria, onde viveu vários
anos e fez célebre o seu nome. (in João Bautista de Castro,
Mappa de Portugal, vol. II, pag. 360, ed. 1763).
Marialva justifica plenamente que se
lhe dedique um dia ,ou mais, para se ter uma ideia do que possui
e de quanto vale. As muralhas do castelo, delimitando a
cidadela, desde logo atraem as atenções, pois a sua configuração
faz lembrar um barco, cuja proa é a torre de menagem.. Ali
podemos admirar, em impressionantes ruínas, o Paço do Alcaide, a
Casa da Câmara, a cadeia, a cisterna e o pelourinho. Junto à
torre de menagem, a Igreja Matriz de Santiago e a capela do
Senhor dos Passos ou da Misericórdia. Num espaço amuralhado
podem ver-se os restos da igreja dos Templários ou de S. João,
com um campanário com a cruz da Ordem do Templo e um portal
gótico.
Na chamada "vila de Marialva"
pontifica a Igreja Matriz de S. Pedro e, ao longo da Rua da
Corredoura, a casa do Conde, além de um interessante conjunto
urbano medieval, com casas e ruas restauradas. Nichos das
estações da Via Sacra vão ponteando os trajectos mais usados.
Nota-se, em redor da Igreja de S. Pedro, que muitas alterações
urbanas ali terá havido ao longo dos tempos, mormente por
ocasião da ocupação árabe. A uma construção de conveniência terá
sucedido a abertura ou a melhoria de alguma ruas de melhor
serventia.
A "Devesa", nome medieval que está
relacionado com o direito dos gados pastarem em sítio reservado,
é hoje o povoado mais florescente da freguesia, e nela podem
encontrar-se, desde casas nossas contemporâneas, a restos de
colunas, capitéis, inscrições, cerâmica e moedas, pois foi ali
que se fixaram os romanos e ali terá sido a Civitas Aravorum,
como o demonstra uma inscrição dedicada ao Imperador Adriano,
descoberta no século XVII e actualmente no Museu da Guarda.
Em 1447 foi construído, a cerca de
meia légua a ocidente da vila, o Convento de Vilares ou de Nossa
Senhora dos Remédios, de frades terceiros franciscanos. A
devoção de Nossa Senhora dos Remédios tem origem nas Cruzadas à
Terra Santa e a imagem que se encontrava neste convento, de
braços estendidos para o povo, atraía a devoção de muita gente,
que ali afluía em peregrinação e penitência. Em 1615, Filipe III
determinou que as Câmaras de Marialva, Meda e Longroiva
contribuíssem com 95 mil réis, durante três anos, para ali se
fazerem obras. Uma vez extintas as Ordens Religiosas, em 1834, o
convento perdeu os seus habitantes, tendo os seus valores
religiosos e artísticos sido levados pelas populações das
localidades vizinhas: Marialva, Carvalhal e Valflor. A imagem de
Nossa Senhora dos Remédios foi então levada para Marialva,
enquanto o Menino, "que passava o tempo a chorar pela Mãe",
tendo sido levado pelos de Valflor, foi dali "recuperado" por
uns tantos marialvenses enquanto outros distraiam os locais com
um espectáculo que lhes ofereciam. Tendo sido muito bem
escondido, só alguns anos depois o Menino apareceu em Marialva,
ao lado de Sua Mãe, na capela da Senhora dos Remédios, onde
actualmente se encontra.
Marialva está actualmente a ser
recuperada, dentro e fora das suas muralhas, tudo indicando que
esta é a hora da sua "descoberta". A parte acastelada tem sido
beneficiada com a sua iluminação, proporcionando uma visão
agradável a quem lhe passa ao lado, pela estrada Nacional 102
(futuro IP2). À noite, dest'arte, não deslumbra menos do que de
dia. Qualquer visitante fica maravilhado pela surpresa que
colhe, quer com a história que ali se encontra a três dimensões,
quer com o silêncio criado pela sequência dos séculos. É uma das
dez localidades integradas no "Programa das Aldeias Históricas
de Portugal" e bem o merece.
Bibliografia:
Rodrigues, Adriano Vasco -
"Terras da Meda - Natureza e Cultura" - 1983;
Saraiva, Jorge António Lima - "O
Concelho de Meda - 1838-1999" - 1999.
|